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Prometera, um dia, na biblioteca. Que se cumpra a promessa. Assim, ao som das vagas.

19.4.04

Azimutes, dezanove dias do quarto mês, o das águas mil. Nasço de hoje a três meses.



Ensinaram-na a acreditar em sinais. Ela acredita. Segue-os religiosamente e chama-lhe sexto sentido ou intuição. Outros, estranhamente, chamam-lhe inteligência. Pelo que se diz na primeira frase, a prova provada: hoje, o falcão gigante que lhe voa na perpendicular em relação ao carro traçou uma paralela, riscando de asas recortadas o céu. Sobrevoou-lhe o carro negro a muito baixa altitude e olhou-a com penas irisadas de chuva. Logo após, as gotas caíam torrencialmente na auto-estrada. Ela sabe o que isto significa e comprovou o já decidido com a suposta razão da noite anterior.

Por motivos de saúde - é preciso digerir tanta felicidade - ela retira-se até de hoje a dois meses. Serenamente, como sempre fez. Agradece a todos os amigos sem rosto e recorda todo o bem que lhe adveio de palavras dos que lhe são afins (o único lacrau que lhe sondava os caminhos e lhe ensinou o mal foi esmagado com pés nus). Por motivos óbvios, nem blog actualizado, nem respostas a qualquer mail por uns tempos, noblesse oblige. Obrigada a todos. Muito.


É preciso que lhe nasça aquele que traz entre o peito e o ventre.
Até 19 de Junho, se Deus assim quiser.


Beijos nas palmas das mãos para dar Paz e abraços atlânticos para quem está longe. Até sempre.
Post pouco dado a preguiças e nada literário. Desta vez, dedico-me às mentes simples que tentam, ainda, sem sucesso, demover-me de obrigá-las a lerem-me. Sou irresistível...



« Elles se rendent pas compte... » *



Fala-se-lhes do Beagle, do jovem Darwin, das Galápagos e da teoria evolucionista, da teoria da criação, do caldo inicial, do Big Bang, de como a Bíblia é uma grande metáfora que terá o seu quê de verosimilhança quando se nos diz sermos pó e sermos pó, de facto, nas infinitesimais quantidades atómicas. Diz-se-lhes que no Génesis, o alfa e o ómega representam o princípio e o fim de todas as coisas: "Eu sou Aquele que É". Imediatamente perguntarão o que são alfa e ómega, mas conhecem o delta - que identificam com o delta do Nilo, o único de que a escola lhes falou -, para logo em seguida, quando se fala no sistema de castas, arregalarem os olhos perante o facto de existirem párias e as mulheres serem vendidas ou mortas na pira funerária juntamente com os maridos quando são das castas mais altas. Maravilham-se perante as possibilidades deixadas em aberto pelas novas técnicas de transplante que se baseiam no crescimento artificial de células a partir de um molde em polímero laboratorial biodegradável. A capacidade de maravilhamento dos alunos fascina-me como me fascinaram os mesmos assuntos, mas há um hiato de tempo que me preocupa: eu soube de Darwin através de um filme da RTP que passou pelos meus dez anos. Com quinze anos, os meus alunos nunca ouviram falar dele... Eu recordo o pouco que domino de cultura bíblica com reminiscências nos meus seis, sete anos e as referências à cultura indiana mais ou menos pelos onze, doze anos. Os meus alunos não têm qualquer referência desse documento historicamente marcante (no mínimo), nem sabem o que possam ser vacas sagradas ou culturas de religiões aparentadas com zoomorfismo (pensam que tudo morreu no Egipto e jaz como múmia, à espera de ser arrancado às areias de uma mastaba)... Quando penso nas possibilidades da ciência, um mundo novo cada vez mais admirável perfila-se sob o meu olhar que abençoa técnicas saídas dos cérebros e das mãos de cirurgiões abençoados por Ele. Para os meus alunos, não passam de acontecimentos algures em lugares de ficção, reportando-os, no entanto, ao quase banal e classificado como capacidade adquirível num qualquer kit vendido pela net, suponho... Nunca há nada maravilhoso em nada. Tudo lhes parece muito difícil, vago e todas as metas são inatingíveis. Por favor, meu Deus, faz-me vir a ser a professora de alguém que tenha a capacidade de sonhar mais alto, ver mais longe, fazer brilhar os olhos pelo prazer simples de aprender, querer estabelecer uma meta e ser capaz de gastar nisso toda uma vida. Pode ser só uma violinista, um cirurgião óptico, uma atleta olímpica, um futuro excelente pai, um cientista de nanotecnologia, uma aspirante ao parlamento, um bailarino clássico de génio, um romancista que me faça acreditar que António Lobo Antunes não envergonhará mais a Língua Portuguesa e deixará de aspirar ao Nobel... Um, uma só desses alunos, por favor, com urgência. Podem esquecer que eu existi no ano lectivo seguinte, mas eu saber, meu Deus, saber que, de alguma forma, eu fiz parte dessa senda, que fui um grão de pó no degrau e que assisti a parte da escalada. Aqui, entre a massa informe de que é preciso gostar muito para não voltar costas ao toque da campainha, pergunto-me o que fazem livros de biblioteca fechados a cadeado, salas onde se faz de tudo menos ler, computadores onde o histórico só refere sites de pornografia, futebol, carros topo de gama e anedotas "fernandorrochianas"-côr-de-vómito... Meu Deus, não queres mostrar-lhes - quiçá, em visão - que o programa internet na escola é apenas mais uma farsa na maioria dos casos e só serve para que se copiem textos para o trabalho sobre Camões, a pesquisa sobre o Euro, o relatório de biologia, o facto histórico número 3.897.564.098 lido pelos mesmos professores anos a fio sem indicação das fontes com a total conivência de todos e mais alguns. Ah, queridos pais e encarregados de educação dos meus queridos alunos durante estes doze anos... Ah, querida ridícula, acéfala, endeusada opinião pública especialista em teorias bigbrotherianas, pontapés de canto e anedotas reles, se tu soubesses... Se tu soubesses para onde caminha o país assim apoucado, cego pelas taxas de juro e pelos contratos e leasings e vendilhação nacional, adorador do vencedor-mais-recente-do-concurso-da-noite, fashion victim de cara por lavar das contas não pagas e do cabelo ninho-de-ratos dos cérebros arejados à custa dos quilómetros feitos pelas noites já gastas à procura sabe Deus de quê, do imediatismo na análise da frescura do bife no escaparate como nas grandes decisões políticas que precisam de indignação e das causazinhas que tão bem desajudam todos os nossos "próximos", "nossos irmãozinhos imigrantes que coitadinhos fazem o trabalho sujo que os meus filhos fui eu que os pari mas enfim, detesto estrangeiros"... Ah, país que cada vez menos o é... Ah, o ensino, "os protocolos que já assinámos", "o investimento na meritocracia", "a formação de pessoal especializado ao nível europeu", "a aposta de uma geração". Se alguém ouvisse o diálogo que eu e outros presenciámos, incrédulos, entre uma "senhora professora" e uma "encarregada de educação" perante uma adolescente anémica, anoréctica (no meu tempo, dizia-se anoréxica), com depressão, asma e pouquíssimo apoio familiar, médico, escolar ou a qualquer outro nível, perceber-se-ia até que ponto isto funciona, isto é digno de respeito, isto é um país... Darwin reformularia a sua tese: o Homem descende do macaco numa longa linha evolucionista... mas não tanto que as atitudes simiescas o tenham abandonado totalmente.

Para quê maravilhar crianças com tantas aquisições humanas a milhões de anos-luz se a maioria delas é vítima de um quotidiano em pleno terceiro mundo? Culpar as gerações mais novas dos pecados de todas as gerações anteriores deixará, um destes dias, de servir como desculpa. E depois?...

Definitivamente, a excelência é, neste país, triste apanágio de párias que uma maioria logo tratará de espezinhar em nome de algum alto sentimento com um qualquer nome feminino. Que quem leu tire as suas próprias conclusões.


Boa noite. Eu tenho um terceiro período lectivo para gerir e muitos alunos de 9º ano para ensinar a ler e a interpretar um questionário...



(* Boris Vian, aliás, Vernon Sullivan, um Homem que se apercebia)

17.4.04

Azimutes, dezoito dias do mês de "águas mil". São 20 horas e doze.



A penumbra assoma ao céu, curiosa do que se passa sobre a Terra onde nos movemos nós. Observo as formigas que correm sobre o montículo de açúcar que lhes coloquei sobre a mesa desta cozinha do farol. Pensei na "semeuse" dos franceses e na sua frase "Je sème à tout vent". Os grãozinhos de iridiscências várias espelham o mundo a um nível quase nanotecnológico, tal como as formigas e os coleópteros inspiram desenhadores de autocarros, naves, capacetes ou até os ergonomistas que aperfeiçoam o mobiliário à medida do ser humano. A imitação que a arte faz da natureza comove-me sempre, e, apesar de muitos tomarem o todo como dado adquirido, eu gosto de pensar - reminiscência budista que faria sorrir o meu guru - que até uma formiga faz a diferença. Foi porque alguém se fascinou a observá-la que se descobriu como funcionam as linguagens destes seres minúsculos, como aquilo que segrega uma determinada espécie da Austrália tem poderes cicatrizantes e analgésicos ou ainda como pode ser perigoso dar um pontapé num formigueiro, como alguém recordou há tempos, como metáfora política. Às formigas é indiferente se as colocam em "ant farms" para os miúdos americanos ou se lhes são eliminados alguns indivíduos em nome da ciência. Limitam-se a perseguir o instinto e a obedecer aos batedores ou pioneiros e aos soldados patrulhadores. Mas nós, que corremos sempre em direcções opostas às da maioria em nome da originalidade, nós que nos arrogamos o direito de criar, vamos ainda dar crédito a quem nos quer como cópia de si a papel químico? Que nos interessa dizer bem as frases que não são as nossas? Durante quantas gerações ainda nos escusaremos a pensar com os nossos próprios cérebros? Não seria melhor que fôssemos estendendo as consequências ao nosso próprio destino que o livre-arbítrio nos faz projectar como seres absolutamente livres? A própria ciência criação pura foi dos revolucionários, dos criativos, dos contraproducentes e até politicamente perigosos. Se Pasteur não tivesse inoculado o pequeno vitimado pela raiva com o medicamento administrado a cães dias antes, como saberia curar a doença? A ciência, todas as artes, tudo aquilo que é novo são a sabedoria em germe, mesmo se não passa de nova versão do já criado há séculos. Repetir as mesmas frases dos mesmos livros pelas mesmas bocas poderá, quando muito, educar o povo insano e desconhecedor, mas e se há quem já saiba tudo o que se diz e sobre isso tenha reflectido, para que serve repisar as verdades que, na verdade, não postas em prática por quem as grita, estão mortas? Só a criação e a reinterpretação podem trazer novas verdades a um mundo em busca constante de respostas. Não basta beber dos sábios. Quem o diz, não o faz. Quem o faz, não o diz. Por isso, todos os cientistas sobre os quais li na verde adolescência enquanto a maioria fazia festas, os "Homens que mudaram o mundo" e os "Deuses e Demónios da medicina" foram, na verdadeira acepção da palavra, criativos, não plagiadores, mesmo se devem aos que os precederam as dúvidas filosóficas. A filosofia pode ser a base, mas a ciência é pragmática e baseia-se em paradigmas. Até prova em contrário, tudo é verdade. Talvez até Séneca seja risível, um dia. E depois, atrás de quem se esconderão os teorizadores das filosofias de milénios? O futuro será, espero, muito mais exigente. Para o nosso próprio bem. Júlio Verne, um génio, é prova de que a ciência é invenção que persegue a ficção e só pode ser filha daquilo que nos guia: os sonhos!

Que tudo volte à serenidade daquele 22 de Maio de 2003, quando, afinal, ela nasceu.


Azimutes, décimo sétimo dia do quarto mês.



De como tudo anda num círculo que se fecha sobre nós


A noite surpreendeu-me na praia, perdida em pensamentos à procura de quem sou. A espuma acinzentou-se na penumbra e só as aves retardatárias chamavam os filhos, há pouco. De braços cruzados, encostada ao velho barco que anseia por voltar a ganhar o largo, pergunto-me o que se passou entretanto. Houve escolhos no caminho, sem dúvida e eu sei a causa. Sempre que há interferências algo acontece. Tudo tem de ser unívoco e escrito com os mesmos dez dedos honestos de sempre teclando no piano alfabético, como no filme japonês quando o erotismo nascia do desenho de caracteres sobre a pele. Assim é a alvura de um écran, esta pele sobre a qual digo de mim, do que me acicata, me muda a cor aos olhos, me move o ventre em espasmos da lentidão sensual de Kundera. Faz-se amor com as palavras e nunca se está só. Paul Claudel, o místico, fala-me ao ouvido direito e diz-me do medo de estar vivo quando a lucidez percute os tímpanos, chama-me Marie, faz-me cócegas com a sua voz de um veludo agreste, agitando-me a pele como a brisa marinha agita as penas perdidas das gaivotas ou o vento no deserto alisa e acaricia as dunas, o que provoca o lento fechar dos olhos e o semi círculo em barco na boca. Proust descreve-me a natureza num sopro suave sobre a nuca, afasta-me os cabelos para perceber quem sou sob a massa escura de queratina e faz-me perceber como foi inteligente tudo o que disse e como faz tudo bem quem lê, quem de facto lê muito, nos livros como na natureza. Henry Troyat lê-me, em voz baixa "O bater solitário do coração" e diz-me que a velhice se aproxima. Sorrio-lhe como quando o li pela primeira vez... Boris Vian também está no meu peito todos os dias e aí cresce-me o nenúfar que matou Chloé que Colin amava, ao sabor de "L'écume des jours"... A Física e a Matemática da época transformam em palpável o que se cheira, a luz do sol nas torneiras provoca a formação de bolhas de ar que se elevam e o que se ouve ectoplasma-se o ar, como hologramas românticos sem o spleen de Baudelaire.
Ah, como todos eles sabiam! Em todos esses homens poisar como borboleta e fugir quando deixam de ser um mistério... Aparecer uma mulher como a chuva de Verão e eclipsar-se como ela se evapora de seguida. Ser só a que fica de passagem e num só ter o mundo inteiro. Perfurar só de olhos a cumplicidade dos seus olhares inteligentes, absorver toda a sabedoria, ser amada de fugida em pensamentos e seguir adiante como se não fosse ainda esse o escolhido... E de todos levar o código para compreender a magia das pequenas coisas que se fazem, apreender os momentos de brilho em que, sorrindo - uns - ou sofrendo - outros - criaram a perfeição no ordenamento das palavras saboreadas e alinhadas pelos dedos de deuses. Ah, ler... ler como se toma um alimento que primeiro se cheirou de olhos fechados e se tocou com volúpia, a pele dos dedos transformada em olhos de cega, a procura dos contornos redondos de um pão acabado de cozer, o som que faz quando é cortado pelo centro com dedos ávidos e reter o calor que se liberta da massa ainda húmida e fumegante. Encher desse ar os pulmões, fazer mmm num sussurro e depois saborear como se fosse esse o último desejo de um condenado que se despede de estar vivo. E, no meio de tudo, ter já uma imensa saudade do futuro, desses homens que escreviam como quem faz amor, desse pão que alimenta corpo e alma, poisar livro e pão e engolir água, vê-la à transparência no copo que lhe dá forma, ouvir-lhe o chocalhar das bolhas que o ar liberta. Levantar-me, assim, devagar, e voltar a deixar a maresia adentrar-me todos os poros, rodopiar de braços abertos e olhos fechados, os grãos de areia imprimindo-se nas linhas onduladas da pele dos pés. Ficar a sonhar acordada, fechar o círculo até que a noite me surpreenda na praia e este texto volte a ser nada...


Beijos nas palmas das mãos de quem lê. Para dar paz à noite.

16.4.04

Em frente ao Atlântico, ainda a sentinela de cabelos revoltos. Pés nus sobre o chão, olhos semicerrados pela brisa que acicata outras vontades, procura ainda os mesmos sinais. Saber esperar é uma virtude. Tudo o mais é passageiro.

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